
Ivan Zahinos, coordenador de relações internacionais da medicusmundi mediterrània, escreve de Sarajevo, Bósnia e Herzegovina. Faz parte da delegação de Barcelona que tem como missão negociar um novo acordo de geminação e cooperação entre as duas cidades.
“Marijo, majko bozija; Da li vidis sta rade sa tvojom decom”
“Maria, Mãe de Deus; Vês o que fazem com os teus filhos”
“Paz, paz, paz e somente paz. A paz deve reinar entre o homem e Deus, e entre todos os povos!”. Foi o que disse a própria Virgem Maria a Marja Pavlović, uma das mulheres que ainda hoje assevera, precisamente no dia 25 de cada mês, estar em contacto com a Santíssima. Estávamos em 1984 e, depois desse anúncio, Medjugorje saiu do anonimato para se tornar uma das regiões mais prósperas de toda a Bósnia e Herzegovina. Um “speech” com encanto.
Nisso estava eu precisamente a pensar quando o nosso avião se preparava para aterrar em Sarajevo, no meio de uma enorme tempestade com fortes turbulências e um grupo de dez irmãs carmelitas brasileiras, munidas de crucifixos e com os seus hábitos, oravam nas minhas costas, implorando para chegarem a terra com segurança e irem ao centro de peregrinação. Dizia cá para mim que talvez não fosse necessário pedir nada à Virgem se o grau de rigor da sua predição tivesse afinal um resultado semelhante. Não fica claro se foi pela falta de poder divino daquelas palavras (supostamente) pronunciadas entre as pedras calcárias do Mediterrâneo balcânico, ou pelo poder excessivo que os líderes nacionalistas tiveram no início dos anos noventa; mas, seja como for, “paz, paz, paz e somente paz” não foi precisamente o que se viveu na região. A guerra na ex-Jugoslávia estourou alguns anos depois, em 1990, causando entre 130.000 e 200.000 mortes.

Medjugorje
Pairando naquele cinzento profundo, dando voltas no meu assento e com o murmúrio inebriante dos “Pai Nosso” em português do Brasil, pensei nas outras “nuvens” que atravessávamos na nossa descida até à “cidade inocente”. Meditava sobre a informação que circula sobre nós e imaginava caminhos infinitos de sílabas, autoestradas de frases, teias de aranha de palavras. Todo esse “matrix” que se alimenta dos nossos pequenos “uploads”, “likes”, “Sim, aceito” e, de volta, em espiral, nos transforma, nos seduz, nos domina e nos faz sentir alimentados… esvaziando-nos. São como chuvas e tempestades, a meteorologia do século XXI. As nuvens da (des) informação e as suas gotículas carregadas de algoritmos que condicionam o nosso humor, tal como um dia chuvoso, um céu azul ou os raios de sol sobre a pele. Uma única imagem ou um simples tweet podem mudar o nosso “mood” numa questão de segundos.

Quem sabe se talvez, naquele preciso momento, estivéssemos a furar a rede que desenha os “Balkan Non-Paper”. Não há melhor maneira do que a negação na própria essência da sua definição, para expressar o quão ameaçadora supõe a mera existência destes documentos. Supostamente atribuídos ao primeiro-ministro esloveno, Janez Janša, os “Balkan Non-Paper” propõem, no século XXI, redesenhar de novo as fronteiras dos Balcãs, ressuscitando a ideia de uma “Grande Sérvia”, uma “Grande Croácia”, uma “Grande Albânia”, mantendo o Montenegro, recortando os limites da Macedónia do Norte e reduzindo à mais mínima expressão a Bósnia que passaria a chamar-se “Estado dos Bosníacos” (isto é, muçulmanos).
E se ninguém pode provar nem negar a existência das palavras da Virgem Maria em Medjugorje, apesar de terem tido um efeito real na economia e no bem-estar da vila, também ninguém pode provar a originalidade ou não dos “Balkan Non-Paper” escritos nesse mesmo ano, cuja divulgação desencadeou, igualmente, um efeito real na sociedade local[1], especialmente na Bósnia: saturação e medo.

Ponte Latina sobre um furioso Miljacka, Sarajevo.
Chuva incessante em Sarajevo, rios a transbordar e cortes de luz. Um outono como os de antigamente, ou talvez ainda mais intenso devido à fúria de um planeta irritado. Caminhando pelas suas ruas e rodeado por uma beleza genuína adquirida ao longo dos séculos, deparo-me com as novas influências: letreiros imobiliários escritos em árabe oferecendo pequenas vilas perto de rios e lagos. O tesouro da Bósnia e Herzegovina, a água, é o reclamo para atrair a classe média do Oriente. Ávidos habitantes do deserto imaginam que nestas terras vivem “irmãos e irmãs” da sua religião, enquanto os bósnios, imersos num eterno pós-guerra, vendem a única coisa que podem, as suas terras, obtendo os rendimentos que se recusam a vir do Ocidente. Algumas mulheres, que não falam a língua local, passeiam pela Baščaršija com burca, confundindo visitantes e turistas sobre a interpretação do Islão na cidade. Quem acreditar que um cidadão daqui e outro do Dubai, Qatar ou Riad têm algo em comum, é porque nunca saiu para “rockar” na noite de Sarajevo.
E também vozes que pedem esmola, vozes de jovens mulheres e homens que pedem pórticos onde pernoitar. São refugiados. Quem sabe se estão a fugir de algum conflito ou da pobreza de um dos vespeiros do mundo, o Médio Oriente. Mas que diferença faz, estão às portas da União, talvez sem saber que essa mesma União se resiste à entrada da Bósnia.
Quando no próximo ano se celebrarem os 30 anos do início da guerra na Bósnia e Herzegovina e mais de 25 anos da assinatura dos acordos que trouxeram a paz a esta região, ninguém, absolutamente ninguém, discutirá que “Dayton[1]” se tornou a armadilha perfeita, a da ingovernabilidade, a zona de conforto de uns dirigentes de retórica nacionalista, que não representam ninguém.
[1] “Acordos de Dayton” é o nome do acordo de paz, assinado a 21 de novembro de 1995, que pôs fim à guerra da Bósnia e foi assinado pelos presidentes sérvio (Slobodan Milošević), croata (Franjo Tuđman) e bósnio (Alija Izetbegogić).

Artesão de cobre em Baščaršija, Sarajevo.
Durante a viagem, entre reuniões, receções e visitas, nas horas vagas leio “Ñamérica” de Caparrós. Perto do final do livro, o brilhante jornalista argentino descreve o regime em que vivemos há mais de duas décadas a nível global: a democracia inquiridora. Atualmente, na grande maioria dos países, não há outro projeto que não seja o de descobrir o que pensam os cidadãos para adaptar os discursos com o único objetivo de manter (ou aceder) o poder. Groucho Marx já dizia “Estes são os meus princípios, mas se não gostam deles, eu tenho outros”. Aqui na Bósnia, Dayton não permite nem sequer esse modelo. Não é necessário ouvir os eleitores. É um sistema desenhado para perpetuar no poder os que encorajam o nacionalismo e para boicotar qualquer tentativa de deixar para trás esses blocos, continuando a adubar a desilusão que, tal como cantou Rubén Blades, “come até um padre“.
E, lentamente, os restos do que outrora foi um estado vão-se derrubando. Falo com os meus queridos na cidade. Jas, resignado, diz-me que teve que pagar mais de 300 euros para tratar a bronquite do seu filho, que pode vir a tornar-se crónica. Num país com um salário mínimo que não ultrapassa os 400 euros, pagar pela saúde está a tornar-se noutro fardo para os seus habitantes. Jasmina atualiza-me em relação ao número de pessoas que tentam sair para o estrangeiro. Estima-se que o país tenha cerca de 3,2 milhões de almas. Quase um milhão vive fora da Bósnia, os mais capazes, os que têm mais formação, os mais inquietos. É a diáspora, o adeus, por agora definitivo, dos que aqui viviam.

Vijećnica, antiga Biblioteca, Sarajevo.
Amanhece. Continua a chover em Sarajevo, mais um dia. A mesquita de Ferhat-Pasha ocupa quase toda a vista da janela do meu quarto no Hotel Europa. Cinco séculos de história otomana ao lado do hotel mais antigo da cidade, erguido pelo Império Austro-Húngaro durante a ocupação dos Balcãs. Nestes tempos, penso no que a Europa poderia aprender com o Islão se se aproximasse da Bósnia, no quão terapêutico seria remover o medo colocado no nosso corpo. Aproximar-nos a partir do nosso próprio relato, chegado, para entender que somos todos feitos de mil e uma peças, que tudo é muito mais complexo do que parece e ao mesmo tempo muito mais simples. A Bósnia, os seus habitantes, a sua arquitetura, a sua música (o Sevdah), a sua forma de entender o tempo, a grande lição que a Europa da primeira velocidade não quer parar para ouvir. Mais uma vez, a constatação de que a cidade mais europeia da Europa continua fora da União Europeia.
E ao longo de toda a viagem persegue-me uma ideia: aliados. Como são importantes na nossa vida, às vezes escolhidos conscientemente, outras vezes sem nos apercebermos. Num tempo em que tudo se mede, o impacto, os indicadores, as linhas de base, a eficiência… penso no simbólico de estar aqui. Uma delegação de Barcelona, 6 pessoas de uma cidade que fica exatamente a 1.992 quilómetros e que em 1992 decidiu se juntar a Sarajevo para alcançar o mesmo objetivo: a paz, a vida, a liberdade, a diversidade. Praticamente em 2022, trinta anos depois, ainda nos emociona que um taxista, uma professora, um ministro ou um polícia fale de Barcelona como a cidade irmã. Aqui não vêm ao caso os elementos estratégicos que muitas vezes condicionam a cooperação entre cidades ou estados: os acordos de pesca, o acesso a matérias-primas, as quotas migratórias e um longo e muitas vezes vergonhoso etc. Pode-se dizer, sem medo de cair no ridículo, que aqui só existe amor. Trata-se de colocar um grão de areia para que as duas cidades que mais amo possam reviver a sua própria história de amor e colocar à disposição dos seus habitantes todo o potencial que ambas possuem.

No Teeth…? A Mustache…? Smell like shit…? Bosnian Girl! O que foi antes um graffiti degradante de um capacete azul dirigindo-se às jovens bósnias durante a guerra, tornou-se agora uma mensagem poderosa de reivindicação da força da mulher. Bairro Austro-Húngaro, Sarajevo.
Um dia antes de sair, faço contas. Mais de metade da minha vida está ligada a Sarajevo. Não vou negar que, aos 44 anos, já me senti um pouco velho. Mais velho e certamente diferente do Ivan que pisou pela primeira vez Sarajevo em 1998. Agora vejo o mundo com outros olhos. Lembro-me de Pedrag Matvejević dizer no seu maravilhoso Breviário Mediterrâneo que o nosso mar é um estado de espírito. Não é uma situação emocional transitória, é uma forma de estar que se prolonga, sem princípio nem fim e que influencia a nossa maneira de entender o mundo. Tal é o poder do Mediterrâneo que nos faz ver, de permanentemente, tudo o que nos rodeia com outros olhos. Com a permissão de Pedrag, que descanse em paz, aproprio-me desta definição quase psíquica para definir esta mesma metrópole, Sarajevo. Quem pisou esta cidade, quem andou pelas suas ruas e conheceu as suas gentes, não poderá nunca mais ver o mundo da mesma maneira. Viverá noutro estado de espírito.
Iván Zahínos
Coordenador de Relações Internacionais
medicusmundi mediterrània
Traduzido de espanhol para português por Vasco Coelho