A medicusmundi trabalha em Moçambique há mais de 20 anos no fortalecimento do sistema público de saúde, com base em princípios de atuação dos Cuidados de Saúde Primários (CSP). Dedicámos muitos esforços, económicos e institucionais, e pusemos muito entusiasmo e energia ao longo destes anos. Mas, o que é que aconteceu nestes últimos 20 anos? A realidade mostra-nos que os CSP em Moçambique estão claramente ameaçados por uma série de fatores, tanto internos como externos, que estão a tornar inviável a sua aplicação. Falhámos nessa nossa tentativa? Teve sentido tanto trabalho?
Por vezes, sentimo-nos como “peixe fora de água” ou “avançando no escuro” num contexto que caminha claramente noutra direção. Empenhamo-nos em levantar uma bandeira e agitá-la praticamente sozinhos, ou com muito poucos aliados. Demo-nos conta que o discurso dos CSP passou a ser letra morta, vazio de conteúdo prático e de vontade política real, especialmente por parte das dezenas de doadores do sector. Que os programas verticais sejam a tendência imperante no sector, é bem conhecido por todos e todas. Este ambiente, endémico nos últimos anos, tem uma repercussão direta em muitos âmbitos, especialmente no âmbito educativo e no âmbito da investigação académica.
Quantos esforços são dedicados no país para realizar investigação sobre aspectos relacionados diretamente com o fortalecimento do sistema de saúde? Poucos… Segundo uma análise das publicações dos últimos 12 anos do Instituto Nacional de Saúde (INS), apenas 1% dos artigos publicados tinham alguma relação com o fortalecimento do sistema.
Que expectativas pode ter um futuro enfermeiro ou uma médica para trabalhar num sistema cujos pilares básicos continuam a padecer de graves problemas, sobejamente conhecidos mas continuamente descuidados? Como conseguir motivar os trabalhadores que veem no sector privado lucrativo e não lucrativo um futuro profissional melhor remunerado?
É evidente que continuar a fazer esforços exclusivamente para reforçar a oferta de serviços não conseguirá reverter esta situação. É necessário chegar ao coração dos futuros trabalhadores públicos de saúde e é necessário encher de razão científica e evidências as agendas de cada uma das reuniões que se realizam no país onde se tomam decisões. É portanto vital, promover os princípios de atuação e os benefícios dos Cuidados de Saúde Primários, tanto no âmbito da docência como no âmbito da investigação.
E, neste sentido, desde a medicusmundi conseguimos estabelecer alianças estratégicas com a Universidade Eduardo Mondlane (UEM), com o ISCISA e com os Centros de Formação de Saúde, para trabalhar conjuntamente na revisão dos currículos de formação, refletir nestes a importância dos CSP e assim ajudar a construir um sistema de saúde para todos e todas. Este é o primeiro passo para que tenhamos futuros trabalhadores comprometidos com os CSP. Por outro lado, para além das instituições já citadas, estamos a trabalhar para consolidar alianças com grupos de investigação nacionais e internacionais (IESE, outros) que possam reverter a atual tendência e construir uma agenda de investigação em sistemas de saúde e CSP.
O Fortalecimento e a Promoção dos CSP para o reforço dos sistemas públicos de saúde devem ir de mão dada e retroalimentar-se, para poder tomar decisões baseadas em evidências e para poder contar com recursos humanos que defendam a saúde como aquilo que é, um direito de todos e todas.
Foto: Bruno Abarca