Don’t want to be a pain
Don’t wanna stay the same”
Passengers – Slug
“O lobo-guará (Chrysocyon brachyurus) é uma espécie de canídeo endémico das regiões espessas e de pastagem do Chaco da Argentina e Paraguai, da planície beniana na Bolívia, das pampas del Heath no Perú, assim como da bacia dos rios Paraguai e Paraná, na América do Sul. É corpulento em comparação com outros canídeos selvagens, uma impressão reforçada pela densidade do seu pelo e pela distintiva crina à volta do pescoço. Pode atingir 34 kg de peso. A estrutura do corpo assemelha-se à de uma raposa, embora as pernas longas lhe deem um ar desagradável e muito peculiar.”
O lobo-guará
Esta descrição zoológica do lobo-guará é muito diferente da perceção mágica que a população do Amazonas Boliviano tem deste animal. Os seus ossos, juntamente com folhas de tabaco e a carapaça de uma tartaruga terrestre, chamada localmente peta, servem para fumegar os meninos e as meninas quando sofrem de “malviento”, doença causada por “olhar para uma coisa assustadora” e cujos sintomas são o choro, as convulsões e a falta de apetite. “Existem doenças tradicionais que só podem ser curadas com a medicina tradicional”, diz-me a Sra. Flabia Mercía no Centro de Saúde Nazaret, localizado no coração da selva, a mais de 90 km do centro urbano mais próximo, Riberalta.
A Sra. Flabia chega com um menino ao colo, o seu neto Angelo de cuatro meses, e perante as perguntas ingénuas que faço aos enfermeiros e enfermeiras sobre as doenças da zona, ela, conhecedora da sua gente e da selva, detalha-me pacientemente e com um sorriso os diferentes males.
“O susto – continua – vai mais longe, quer roubar a alma dos meninos e meninas. Normalmente aparece após uma queda que há que identificar muito bem”. O menino ou a menina não pode dormir, empalidece, chora, sintomas que indicam claramente que lhe está a ir o “Ajayu”, a alma. O naturista ou curandeiro da comunidade, banha-o com urina e manjericão, fumega-o e põe-lhe a roupa do avesso (costuras para fora). “Se é susto – diz-me Flabia – os sintomas desaparecem quase imediatamente”.
Numa época em que a desnutrição infantil está “de moda” na agenda de saúde da ajuda internacional, na Amazónia têm um remédio particular. O “mocheo” faz com que a criança transpire, perca peso, a sua pele se debilite, fique sem forças. É causado por algumas árvores malignas, pelo espírito de um falecido ou por se cruzar com uma serpente. “Tem que cortar (esquartejar) uma vaca – diz-me a Sra. Flabia – abre-se em canal e a criança é introduzida no interior durante cinco minutos. Depois é preciso tirá-lo e tapá-lo e só no dia seguinte é que se lava com água morna e toma banho”.
Embora algumas destas doenças dos habitantes da selva sejam conhecidas, a verdade é que a medicina biomédica, por norma, sempre as ignorou, criando uma barreira muitas vezes intransponível entre a população e o sistema de saúde. Mas, na última década, parece que estes modelos de saúde, o ocidental e o tradicional, aparentemente antagónicos, após décadas de combate chegaram a uma trégua. Hoje, busca-se que em cada centro de saúde exista um curandeiro ou médico tradicional (devendo estar credenciado) para trabalhar de mãos dadas com o pessoal de saúde do ministério. “O que eu não posso curar, você pode, o que você não pode, eu posso”, explica Carlos Vargas, licenciado em enfermagem e responsável pelo Centro de Nazaret, expressando em voz alta o lema comum repetido como mantra, tanto por técnicos de medicina ocidental como por xamãs sábios da medicina tradicional. Construir um equilíbrio entre medicamentos diferentes já não é uma quimera na Bolívia.
Dalsy e Carlos – Centro de Saúde de Nazaret
Mas esta simbiose nem sempre funciona. Existem comunidades indígenas, como os “Esse ejjas” ou “Chamas” que não confiam no sistema de saúde ocidental, vivem de costas voltadas, não acreditam nas suas virtudes. Outras, não tão remotas, recorrem primeiro à medicina tradicional e, só se esta não funcionar, é que vão à unidade de saúde. Em muitas ocasiões “chegam tarde” para poder salvar vidas, especialmente as das crianças desnutridas.
Com quase trinta e sete graus de temperatura e toda a humidade do planeta concentrada naquela pequena sala de espera, em Nazaret senti aquela emoção profunda que emana em nós, aqueles que acreditamos que estar saudável é o principal motor das nossas vidas. A profunda emoção do compromisso dos profissionais de saúde, que mais uma vez, em condições extremas, estão dispostos a ajudar. A emoção profunda que nasce quando se vê o compromisso político (apesar de todos os pontos que podemos discutir e sei que são muitos) de um Estado que, pela primeira vez na sua história, reconhece o direito e as crenças de todas as nacionalidades que habitam a sua terra. Quantas vidas terão sido salvas apenas com esse reconhecimento? Quantas pessoas ter-se-ão aproximado da porta de um hospital agora que já não são consideradas cidadãs de segunda classe? Estamos diante de líderes que, pela primeira vez, se assemelham ao seu povo, políticas e estratégias que abraçam a multiculturalidade que define este país inventado pela colónia e os seus herdeiros.
Raiz de Mapaje, Amazónia Boliviana
E talvez ainda de forma mais profunda, senti a emoção sentida ao ir contra a maré e sair vencedor. María Angélica, que lidera as nossas ações neste forno há mais de cinco anos, explica como conseguiram conhecer detalhadamente em cada centro de saúde as características de cada família, o número de mulheres grávidas, como recolhem o seu lixo, como é sua casa, quais as suas habilitações académicas, qual o seu sistema de água, quantos médicos tradicionais existem, etc… Os profissionais de saúde de Nazaret transformaram a sala de espera numa sala de comando, como se tratasse da própria Entreprise; mapas, esboços, projeções e pirâmides populacionais revestem as paredes deste pequeno oásis de saúde. Abriu-se a porta à comunidade, às suas crenças e perceções. Estamos diante do poder da “borracha Eva” e do esferovite, dos alfinetes, do silicone e da fita-cola.
No há bases de dados, algoritmos, empresas privadas de seguros interessadas em comprar os dados dos pacientes.
Aqui não há tablets, nem smartphones, talvez porque o governo de Evo tenha expulsado a cooperação dos EUA e das suas grandes ONGs, acusando-as de intrusão, e o bonzinho Bill Gates não encontre um aliado no governo da Bolívia para vender os seus gadgets. Não existem bancos de dados, algoritmos, companhias de seguros privadas interessadas em comprar dados dos pacientes. O que aqui se “mama” é motivação, desejo de dar saúde a quem não a pode pagar, respeitando aquilo em que acreditam e com um investimento que o Estado pode assumir.
Cartaz elaborado com “borracha Eva” – Centro de Saúde 12 de Octubre
Com estes dados, antecipam os problemas, garantem que todas as mulheres passem pelos controlos pré-natais, os diabéticos tomam a sua medicação, o lixo é gerido adequadamente, coordenam com os curandeiros, há acesso à água, etc. Nos últimos dois anos, por exemplo, as doenças diarreicas e respiratórias foram reduzidas em mais de 10% e quase 100% das mulheres dão à luz nas unidades de saúde.
Não é novidade o que cresce no solo mais fértil do planeta, mas infelizmente é algo esquecido. Já funcionou em centenas de países, mas esta forma de oferecer saúde não se equivale ao negócio. O avanço demencial da tecnologia como um fim e não como um meio impediu esta maneira de fazer saúde pública, tão próxima, tão nossa, tão eficaz e eficiente.
Equipa da medicusmundi em Riberalta
Seneide, que mora a apenas dez metros do centro de saúde, preparou-nos um café e pão crioulo. A mim salvou-me a vida, os quilómetros, as mudanças de altura e de temperatura estavam a deixar-me o corpo e a mente inúteis. Diz-me que está casada com o “Malario”, o responsável pela realização dos testes de malária a toda a comunidade do raio de ação de centro de saúde. Percorre 30 km por dia numa motorizada para alcançar toda a população. Formou-se em dezoito meses, há gente que se forma num ano”, depende da inteligência de cada um”, conta Seneide, que também foi ela própria a “Malaria” noutra comunidade. De onde tiram a vontade de ir até ao lugar mais fechado da selva? O que os encoraja a levantar-se e subir-se a uma motorizada com um monte de placas e lâminas para realizar o teste?
Seneide – Comunidade de Nazaret
Regressamos a Riberalta às duas horas da tarde aproximadamente, sob um sol e uma humidade esmagadoras. A selva produz um estado hipnótico semelhante ao que experimentas quando olhas durante alguns minutos o mar, o horizonte, as planícies nevadas ou as dunas do deserto. Sentes que sempre pertenceste a esta imensidão de vida, verde, de vegetação e rios infinitos. Talvez seja algo que levamos dentro de nós, inclusive anterior ao nosso ADN, algo que nos faz voltar aos tempos em que nem sequer existíamos, mas ela sim. Não há medo ou rejeição; pelo contrário, sentes que estás num abraço eterno, num sonho do qual nunca desejas acordar.
Neste estado alterado, pensei nos meus, no desejo de que também eles pudessem ver esta vasta e poderosa extensão de vida. Pensei em todos aqueles que não tiveram a sorte de ver este pulmão e imaginei como, ao estar à sua frente, eles se transformariam gradualmente, esquecendo o urgente, o efémero e se fossem fundindo com esta harmonia.
Pensei que aqueles que cortam, queimam ou exploram este paraíso, talvez sofram de “susto” e que o “Ajayu” os tenha abandonado para nunca mais voltar, e que agora nos queiram condenar a todos a um futuro no qual, talvez os nossos filhos e filhas, não saibam o que significa respirar oxigénio, não entendam que se trata afinal de contas de uma única saúde, aquilo que nos rodeia, o que somos, o que acreditamos, o que amamos.
Iván Zahínos Ruiz
Coordenador de Relações Internacionais
medicusmundi mediterrània
*Traduzido de espanhol para português por Vasco Coelho