Jorge Enrique Adoum

Três histórias, um continente, centenas de culturas, infinita violência.
Luz Maria e o seu filho Marcos estão na casa de abrigo há meses. Ela conta-me a sua história olhando-me nos olhos, não desvia o olhar, com as mãos na mesa. O seu sorriso é lindo, termina cada frase com “sim senhor”. Insisto que, por favor, não me chame de senhor. Responde-me “sim senhor, não há problema”. Fala com um doce sotaque, a sua dicção é suave com uma cadência atraente que chama a atenção. Ao explicar a sua história, tem o dom da pausa africana. Prometo-lhe que não revelaremos detalhes que a possam colocar em risco. Sorri consentindo. Cata, a incansável companheira da Casa Matilde, repete as minhas frases numa linguagem que lhe é mais familiar. A sua presença é um alívio para Luz María e para mim.

Nasceu numa comunidade da fronteira entre a Colômbia e o Equador. Lá, criou-se com a sua família, mãe e três irmãos, pai ausente (eu escolhi esta maneira mais educada de dizer “valeu-lhe”). Fez a escola primária e trabalhou na zona fronteiriça. Em busca de um futuro melhor, foi para a Argentina e lá, como nos acontece a todas e a todos, apaixonou-se. Embora no caso dela se tenha apaixonado por um “compatriota”, tal como também nos acontece a muitas e a muitos, a história mostrou que não teve a melhor pontaria. Das mãos de Juan, a violência não demorou a aparecer, agressões, insultos, golpes e mais golpes. Depois da violência veio a reconciliação, as flores, as belas palavras, o “não volta a acontecer”. Mesmo grávida continuaram as agressões e procurou refúgio na casa de uma amiga. Após a gravidez, e apesar da violência, decidiu ir morar com o seu parceiro. Ele prometeu que iria mudar, que cuidaria dela e do Marcos. Mas, a Argentina não lhes deu as oportunidades que esperavam e, novamente fugindo, decidiram regressar à Colômbia, à sua comunidade, à sua terra. A mudança de ares não acalmou a violência, pelo contrário, naquela terra húmida e fértil as agressões continuaram.
Regressar à Colômbia foi meter-se de novo na boca do lobo. A suposta paz colombiana abriu oportunidades para que os antigos grupos armados se reciclassem, mudassem as suas iniciais, mas continuassem a fazer o que sempre fizeram, recrutar jovens para continuar a controlar as suas áreas de poder e continuar a extorquir a população. Juan não queria fazer parte de nenhum movimento armado e, uma noite, escondeu-se e fugiu deles. Os grupos armados ameaçaram-no de morte, tanto a ele, como a Luz María, a Marcos, à sua família e a toda e qualquer pessoa mais próxima. Ninguém pode dizer não às armas, não se pode permitir dar esse exemplo.

Com apenas alguns pertences, atravessaram a fronteira e chegaram a Quito. Não tinham dinheiro. Uma organização humanitária deu-lhes o mínimo para poderem alugar um quarto num bairro de Quito. As agressões voltaram, desta vez com mais força. Luz María temia por Marcos e isso foi o que dessa vez a encorajou a dar o passo definitivo. Saiu à meia-noite. Marcos caminhava descalço, não puderam levar o mais mínimo. Encontraram refúgio na casa de uma conhecida. No dia seguinte, alguém lhe contou sobre a Casa Refugio Matilde. Desde então vive escondida.
A história de Luz María tem rostos infinitos. Milhares de colombianas e colombianos atravessam a fronteira fugindo de um conflito sem fim. A grande maioria não pode retornar. Sofrem, como sempre, as mais vulneráveis. Luz María terá que começar uma nova vida num país onde a xenofobia aumenta devido a uma avalanche de pessoas de países vizinhos. Violência e mais violência.
Clara chega com a sua filha Elena, que tem apenas 4 anos de idade. Fala espanhol alterando a ordem das frases “a comunidade da qual eu venho, muito forte é”. Vivia numa comunidade indígena de Chimborazo, a mais de 4.000 metros de altura. É a segunda vez que entra na casa. Conta que viu a sua irmã mantendo um suposto relacionamento extraconjugal com um homem com quem trabalhava (passeavam juntos no final do dia de trabalho). Isso faz dela uma cúmplice e, tal como a sua irmã, devem sofrer o castigo ditado pela lei indígena. Podem ser chicotadas, banhos de água gelada, golpes com urtigas. Deveriam pagar pela sua culpa, dizem os seus familiares, liderados pela sua própria mãe. Neste caso, a violência vem da pessoa que a trouxe ao mundo. Fugiu com a sua filha, pela primeira vez, mas depois já lha retiraram. Na casa de abrigo, com uma ordem judicial, conseguiram que a sua filha regressasse. Está ameaçada, tanto ela, como a sua irmã e as trabalhadoras da Casa Matilde que conseguiram ir buscar a menina.
Como ela, milhares de mulheres sofrem violência de familiares sob a proteção de uma suposta tradição e sabedoria. Sei que há muito debate por trás destas palavras, a cosmovisão, a antropologia, mas ao ver esta mulher de apenas vinte anos, com a sua filha de quatro anos, a fugir de castigos físicos por ter visto uma suposta traição cometida por uma familiar, não consigo entender que possa existir algum tipo de humanidade neste comportamento. Violência e mais violência.

No meio das entrevistas, num estado que mistura a raiva, a surpresa, a indignação e a vergonha, lembro-me do filme “O Abraço da Serpente” e dos séculos de guerra entre seres humanos nesta terra, nesta América Latina. Vejo as escamas dessa cobra, como muda de pele, mas continua a ser a mesma devoradora. Há histórias de violência pessoal, de agressão e dominação da mulher, há um histórico de violência coletiva. Existem conflitos políticos que atravessam fronteiras. Neste estado, confesso, foi difícil continuar com as entrevistas.
Como poderão imaginar, não foi minha intenção aprofundar nas histórias de Luz María ou de Clara. Aliás, amanhã temos uma nova entrevista, com Jesselin – como outras venezuelanas e venezuelanos (quase um milhão), foge de uma crise humanitária fora de controlo (não quero entrar noutros debates políticos e geoestratégicos) –, sendo que aventei escrever este caderno sem o seu relato. Seria a terceira história. Eu vou conhecê-la, mas vocês não. Sem intenção de menosprezar a sua experiência de violência, penso que já nos aproximámos o suficiente do denominador comum. Mulheres que sofrem, as que mais sofrem, consideradas propriedade e, além disso, duplamente atingidas por conflitos sociais e políticos extremos e por uma sociedade que fala de classes sociais, mas que não quer reconhecer a luta entre elas.
Na verdade, poderia ter escrito três cadernos com os detalhes das suas histórias, mas, afinal de contas, estes encontros foram momentos íntimos, apenas para elas, para mim (este blog) e Cata que me acompanhava nas sessões. São histórias de violência, desumanização, mas, infelizmente, quantas existem, quantas houve e continuarão a existir.

O que eu quero contar, como protagonista desta história (e sim, digo protagonista com a boca cheia, correndo o risco de ser rotulado como estrangeiro ocidental) é que, no final, tem que ser um grupo de mulheres guerreiras num ambiente que as quer devorar (o investimento social no Equador caiu significativamente nos últimos dois anos), que não tiveram medo e construíram uma casa de abrigo, a Fundação Casa de Abrigo Matilde há quase 30 anos atrás, com apenas 30% de apoio do Estado (quando lhes toca) e a cooperação de latitudes distantes. Elas, Cata, Elizabeth, Charito, Carmita, Jeny, Andrés, Pamela e outras são as heroínas que oferecem este oásis para que centenas de mulheres todos os anos tenham, pelo menos, alguma chance de sobreviver e construir um novo projeto de vida. Onde estão os governos? Passam inadvertidamente e ligam quando há possibilidades de figurar na fotografia para inaugurar alguma coisa… Onde estão as grandes agências da ajuda internacional? Para além de serem excelentes diagnosticadores, pouco mais… E, acima de tudo, onde está o capital privado neste drama? Não encontrei aqui nenhum filantropo, não encontrei aqui nenhuma fundação bancária…

Mas, do Oásis não há outra saída senão caminhar em direção ao deserto? Depois de ouvir estas vidas, estão elas condenadas a voltar à dependência? Na Casa Matilde acompanham-nas, atendem-nas psicologicamente, formam-nas nalguns ofícios. Algumas delas terão sucesso, muitas regressarão com o risco de morrer na única realidade que conhecem, a dos seus agressores, a das suas comunidades justiceiras.
Pergunto à Cata e à Eli o que acontecerá a Luz María e a Clara. Com muita força no olhar, dizem-me que possivelmente continuarão o seu caminho, com os seus filhos e filhas, na selva de Quito, que conhecem muitas histórias de sucesso. Não consigo tirar da cabeça o que sentirão no dia em que saírem da casa.
Nesta noite clara de Quito, escrevo com raiva, já devem ter notado. Sim, certamente a solidão não ajuda, mas nem acompanhado, depois de ouvir estas mulheres e o drama que vai para além das suas histórias pessoais, eu hoje veria luz na construção de uma nova América Latina, igualitária, sem violência, sem essas desigualdades selvagens que acredito serem o combustível de tanta violência. Sei que as companheiras da Casa Matilde entenderão as minhas palavras. Estamos juntas nesta luta. É a luta de David contra Golias. Também sei que os que lerem estas linhas escritas no meio do mundo encontrarão algum sentido. Disto se trata escrever estes cadernos, de contar por experiência própria o que vejo. Nunca quis elogiar o nosso trabalho. Lamento dizer que não é tão romântico como muitas e muitos o imaginam. Muitos dias dói, bem lá no fundo. Mas ser realista não é desistir. Sentir-se suplantado é humano.
Nestes dias leio e releio Galeano, As veias abertas da América Latina. Já se passaram quase cinco décadas desde a sua publicação e sinto que não estamos perto de fechar estas feridas. Galeano dizia: “A pobreza não está escrita nas estrelas, o subdesenvolvimento não é fruto de um obscuro desígnio de Deus.” Eu pergunto-me, a violência está escrita nas estrelas? É um desígnio de Deus? Se somos nós, os humanos, os seus criadores, não teremos a capacidade de a desterrar do nosso mundo?